terça-feira, 25 de agosto de 2009

Teatro feito para tornar o mundo melhor



Quarenta e duas mil pessoas assistiram às apresentações das peças da Mostra Brasileira de Teatro Transcendental, realizada em Fortaleza


Pela ordem natural da vida, "mãe não nasceu para enterrar filho". Mas nem sempre nossas histórias seguem essa lógica. No mundo de violência e tantas epidemias, essa afirmação se torna real para muitas famílias que não têm mais os seus filhos em casa. Por causa de uma bala perdida ou uma gripe qualquer. A atriz mineira Heloísa Duarte viveu esse drama pessoal. Perdeu o filho, que na época tinha 27 anos, para a brutalidade do mundo cão. Anos depois, no palco, por coincidência (ou não), ela revive a história de uma mãe que não tem mais o seu filhote. Um pouco do seu próprio enredo de vida. A peça 2 de novembro, de Minas Gerais, pode ser considerada a melhor montagem da sétima edição da Mostra Brasileira de Teatro Transcendental, que terminou ontem, em Fortaleza. Emocionou, no último sábado, o público que esteve no Theatro José de Alencar, palco mais nobre da capital cearense, em duas sessões. O texto de Wesley Marchiori propõe o encontro de uma mãe e do seu filho depois de 10 anos de ausência, justamente no dia de finados, 2 de Novembro. Se não fosse um festival com temática espiritualista, a dúvida se colocaria de forma mais veemente: aquele filho estará realmente morto? Ou abandonou a mãe e resolveu voltar depois de tanto tempo? A questão é respondida ao longo da montagem, através de cenas primorosas, como naquela em que a mãe reclama do filho fumante, mas é ela própria quem está com o cigarro aceso. Ou na poesia das músicas de Roberto Carlos que permeiam toda a história. O filho é interpretado pelo também mineiro Olavo de Castro que esteve em cartaz com uma outra versão (não aquela de Tony Ramos e Dan Stulbach) da peça Novas diretrizes em tempos de paz, agora nos cinemas. O ator, que faz teatro desde os 17 anos, tem uma queda especial pelo drama. E conseguiu dar o tom certo à montagem - nem mais, nem menos. Castro conta que foi uma perda que o fez perceber a emoção necessária para a cena em que o filho socorre a mãe. Uma semana antes de a peça estrear, o seu pai teve um enfarte e morreu, literalmente, nos seus braços. "Uma semana depois, quando tudo aconteceu, consegui a emoção que o diretor (Kalluh Araújo) queria. A gente estava falando de morte, mas eu não tinha vivenciado isso", conta. Não foi através da religião que ele tomou forças para prosseguir, mas através da arte, nos palcos.

Já na sexta-feira, outra peça que também tinha a morte como pano de fundo foi apresentada no Theatro José de Alencar. Mas com uma ênfase diferente, que enfocava o espiritismo de forma muito clara. Estranha Loucura conta a história de uma mãe de família, Dona Lorena, que é perturbada pelo espírito da ex-namorada do filho, morta (por acidente ou suicídio, isso é revelado no decorrer da trama) depois de uma briga em sua casa com o marido de Lorena - um homem que não está muito interessado na família. A peça, que tem direção de Mauro Júnior, foi encenada pelo Núcleo de Arte e Cultura do Instituto Arte e Vida, de Franca, interior de São Paulo. O problema é que os atores (apesar de muitos estarem nos palcos há vários anos) não são profissionais. Aí falta técnica. Há que se destacar ainda a valiosa participação da companhia Ser em cena, de São Paulo. Os atores, que são afásicos (sofreram alguma perda de linguagem decorrente de uma lesão, normalmente do lado esquerdo do cérebro, provocada geralmente por AVC, traumatismo craniano ou tumor cerebral), realizaram esquetes antes dos espetáculos principais, durante todo o fim de semana. No sábado, por exemplo, um boxeador e o seu treinador saíram da plateia para questionar como seria a vida sem humor. Uma luta muito difícil. Melhor lutar pela vida, com muito humor. No encerramento da mostra, na noite do último domingo, o ator carioca Eduardo Richie conseguiu vencer o desafio de realizar um monólogo baseado na obra de Santo Agostinho ao apresentar Inquieto Coração, peça que encerrou a sétima edição da Mostra Brasileira de Teatro Transcendental, que aconteceu desde o dia 18 até o último domingo. "Conhecia a obra de Santo Agostinho há mais de dez anos. Pela minha formação como psicólogo, achava muito interessante como alguém tinha tanta consciência do seu 'eu', naquela época. Quando esse conceito não existia. Ele viveu entre os séculos IV e V", conta o ator. Para elaborar o texto da montagem, Richie mergulhou em livros, cartas, sermões. Um desses livros foi Confissões, considerada a primeira obra autobiográfica da humanidade. "Independente de ele ter sido santo, fiz um recorte sobre questões universais", complementa.

No texto encadeado, muitas vezes sem pausas, com um pensamento levando a outro de forma quase frenética, Santo Agostinho já em sua velhice analisa os fatos que aconteceram no seu passado (conceito de tempo também discutido pelo religioso). O quanto, na adolescência, "gostava de fazer o mal não só por prazer, mas também por vaidade". O quanto "queria só amar e ser amado", como qualquer um. O dilema vivenciado por Santo Agostinho mostra a culpa na luta que enfrentou entre o sagrado e o profano, dualidade que acompanha o homempelos séculos.
Encerramento - Depois de seis dias de festival, com programações gratuitas e troca de ingressos por alimentos não-perecíveis, a mostra contabilizou a arrecadação de 15,5 toneladas de alimentos que serão doadas a seis instituições sociais. De acordo com a organização, o público foi de 42 mil pessoas. Muita gente que nunca tinha visto uma peça teatral. "Claro que nos preocupamos com a parte técnica, mas a mensagem também é importante. Queremos estimular a produção de espetáculos que tenham uma temática que leve à reflexão, com mensagens de paz e espiritualidade", explica Suely Vieira, coordenadora da mostra. O tema do próximo ano já foi divulgado: educação. Além dos alimentos, os ingressos das peças serão trocados por livros. Depois de tantos anos de distanciamento, a arte se aproxima novamente do transcendental, a serviço de uma transformação social.

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